domingo, 21 de outubro de 2012

Ferreiro desafia perigos do ofício na luta pela sobrevivência

Conhecida pela cidade que não dorme, Potengi reúne trabalhadores que lidam com o ferro numa rotina exaustiva
Potengi. Quem chegar pela madrugada na "cidade que não dorme", se depara com o tilintar dos ferros, no moldar das ferramentas em brasa. Foices, machados e roçadeiras tomam forma a cada batida. Potengi recebeu a fama que vem de décadas, por conta dos trabalhadores braçais, os ferreiros, que pouco dormem durante a vida para se dedicar a uma profissão árdua, mas compensadora para uma cidade com poucas opções de sobrevivência, além da agricultura e da atividade no serviço público municipal.

O início da atividade mantém um contato direto com o ferro que vai se amoldando à ação do fogo. Em seguida, é feita a fase de formação dos produtos e o uso de marteladas para destacar a forma do produto final fotos: elizângela santos

Para quem sempre conheceu o ditado de que "em casa de ferreiro o espeto é de pau", o dia adia, para não dizer o contrário, dos trabalhadores das mais de 30 oficinas, a maior parte delas na Vila Central, na saída da cidade, é o que garante a sobrevivência de mais de 60 famílias, em pleno sertão caririense. A cidade de pouco menos de 10 mil habitantes já se acostumou com a rotina. Os próprios ferreiros sonham com a conquista de um espaço, uma espécie de galpão, para não incomodar a vizinhança com o barulho das batidas no ferro em brasa. Mas, ainda é só um sonho.

Ganhos


A maioria dos trabalhadores ganha pouco mais de um salário. Pelo menos, é mais rentável do que a roça, que dá a metade do valor na diária. A rotina de trabalhar com a quentura envolve ter que acordar muito cedo e seguir no rojão até o meio-dia. O rendimento está na quantidade de peças produzidas. Quanto mais, melhor. O ganho vem da pequena porcentagem que cada ferramenta oferece. A falta de organização da categoria, mesmo com a existência da Associação dos Ferreiros de Potengi, leva a uma concorrência desestimulante para os trabalhadores. Resultado: todos resistem enquanto podem, já que não há outra saída mais rentável.

A terra dos ferreiros passou a ser uma referência. A atividade remonta o período medieval, no ritmo e forma de produção, no trato das peças na batida amparada pela bigorna. De um lado, o ferreiro molda e do outro há um auxiliar. A porcentagem de cada ferramenta é dividida para os dois. A maior parte fica com o ferreiro, o mestre. A marca de cada oficina são duas letras em cada produto, normalmente as primeiras do nome do proprietário, que fica com a maior parte do lucro. Uma das peças vendidas mais em conta é a foice. Em torno de R$ 8,00.

Abandono
As garantias trabalhistas se encontram tão distantes quanto as origens dessa profissão árdua, antiga e que tem gerado sequelas na vida desses homens. Alguns deles, seguidos pelos seus filhos, no mesmo ritmo da batida. "É um trabalho quase escravo", diz Antônio Galdino, que já dedicou 22 anos, dos 48 de vida, ao ofício. Ele é consciente do abandono em que vivem os oficineiros do ferro.

Adentram em taperas, algumas delas praticamente caindo sobre suas cabeças, e acendem o fogo de carvão. O consumo da madeira é o que ameaça a atividade. Eles temem a fiscalização de órgãos competentes.

Fiscalização
A ausência da fiscalização trabalhista para garantia de direitos mínimos reforça a tese de Antônio Galdino. "Se eu deixar esse trabalho hoje, amanhã não vou ter R$ 1,00", lamenta. A DRT no Ceará foi contatada para se manifestar sobre o problema, mas até o fechamento desta edição não havia retornado o contato.

Felipe Galdino, de 19 anos, há dois decidiu enveredar, contra a sua vontade mesmo, na profissão de ferreiro. É auxiliar do pai. A renda da família pode chegar em torno de R$ 1.100,00, na melhor das hipóteses de produção. No casebre de taipa em ruínas, a jurema em brasa esquenta o ferro. Enquanto os dois finalizam uma roçadeira numa área aberta, próxima ao quintal. Na sala da entrada da casa é dado o retoque final no esmeril. É a terceira função, a do esmerilador.

A venda acontece para estados do Nordeste, como o Maranhão, Piauí, no Ceará mesmo, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, interior de São Paulo. Pelo Brasil afora há ferramentas que passaram pelas mãos desses homens sujos de carvão, no amanhecer do dia. Uma garrafada de café forte está próxima de Genil Almino dos Santos, há 25 anos na lida do ferro. É para espantar o sono. Na mesma oficina, a mais antiga da cidade que traz a marca LL, trabalha o irmão, Cícero Laurino dos Santos.

De nove irmãos- ferreiros, restam os dois. Os outros foram em busca de uma atividade menos sofrida para sobreviver. São 40 peças produzidas, em jornadas que vão a mais de 10 horas por dia. O ganho pode atingir R$ 80,00. Não há atividade mais rentável na cidade.

Na época do inverno, a produção das ferramentas é dividida com a agricultura. Cícero também tem feito arte com o seu trabalho. Há poucos meses, um chinês fez encomendas de facas especiais e espadas de samurais. Ele se arriscou em fazer os modelos estilosos, num trabalho exaustivo mais compensador pelos seus resultados finais. "Temos que arriscar fazer um pouco de tudo", afirma.

Segurança no trabalho é negligenciada


Potengi. Para cada oficina, uma bigorna. É dessa forma que o presidente da Associação dos Ferreiros de Pontegi, Antônio Cruz da Silva, conhecido na cidade por Antônio de Agecílio, contabiliza esses postos de trabalho.

Foices são alguns dos produtos elaborados nas rudimentares oficinas de Potengi, reunindo boa parte da mão de obra masculina do município. Os artigos são finalizados após passados pelo esmeril, que faz o acabamento final das formas

Um levantamento vem sendo feito pela entidade para o desenvolvimento do histórico desses trabalhadores. No entanto, já se sabe que a iniciativa começa pelo trabalho de campo, com a pesquisa junto às oficinas.

O reflexo da desorganização da categoria se dá na prática. O presidente é um apicultor que entende um pouco mais de associativismo. Não há um ferreiro que se interesse em organizar a categoria. Eles sequer se lembram de quando houve uma reunião. "É uma classe desunida", diz Antônio de Agecílio.

Resultados
Aponta que há a necessidade de buscar direitos, mas poucos acreditam em resultados. Promessas já foram feitas aos montes em tempos de eleição, segundo Antônio Galdino. Desacreditado de alguma melhora, fala em abandonar a profissão. O filho, Felipe, cursou até o primeiro ano do ensino médio. "Foi por falta de opção que hoje estou aqui, mas pretendo ainda continuar os meus estudos" afirma o garoto, ao sonhar com uma nova realidade para os profissionais.

Nas mãos e olhos de Cícero, há marcas presentes em quase todos os ferreiros. São cicatrizes das queimaduras, que eles chamam das pequenas picadas de insetos. Antônio Galdino ficou alguns dias sem ter condições de trabalhar, com os olhos irritados. Enxerga pouco e tem dificuldade para escutar.

O problema de audição é comum entre eles, por conta do fino e constante barulho da batida do ferro. Problemas intestinais também se apresentam por causa da alta temperatura. A bigorna fica à altura da barriga. "É muito difícil, maltrata muito", diz Cícero Laurino.

O presidente da associação reconhece todas essas dificuldades. Os trabalhadores reclamam da falta de apoio do poder público. Mesmo com os riscos de acidentes de trabalho e possibilidades de ficarem com sequelas causadas pela função, com registros de casos até de pessoas com os dedos das mãos mutilados, os ferreiros não são muito simpáticos à ideia de usarem equipamentos de segurança. E justificam que a luva pode causar acidente maior, caso uma ferramenta escorregue da mão, a proteção dos ouvidos esquenta, as máscaras dificultam a respiração e poucos, mesmo trabalhando com o fogo e soldas, utilizam óculos de proteção.

Antônio de Agecílio acredita que a união da categoria pode mudar esse quadro. Ele afirma que pretende realizar uma reunião nos próximos dias, para debater melhorias para as condições de trabalho. Reconhece a importância dos ferreiros para Potengi, na geração de renda e movimento da economia.

Condições
"O que eles ganham fica aqui mesmo", afirma. Mas, também destaca que as condições não são tão boas para os donos das oficinas, que ficam com a maior parte do lucro. Há três anos está à frente da entidade e reconhece que os prédios estão caindo por cima dos oficineiros. Um deles afirma que as promessas de melhorias por parte dos donos das oficinas são constantes. "Não vem mesmo é nada. Estamos entregues e própria sorte", admite Galdino. Alguns ferreiros em atividade começaram ainda quando crianças ou adolescentes. Um deles é Rogério Custódio, com 22 anos. Há oito exerce a atividade. A profissão é herança de avô para pai e depois o neto. A escola ficou no esquecimento. Como também, mesmo diante da cultura e da referência social e econômica, ficaram esses homens do ferro e do fogo.

REPÓRTERELIZÂNGELA SANTOS 


Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1194976#

Colaboração:  Professora Carla Hérica Linhares

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